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31 dezembro 2003

"Celebremos a Infância, a Esperança de Vida"

"A teologia faz-nos esquecer que a Igreja é uma religião de amor. Se tem que travar um combate, não é com a fraseologia de artigos de guerra, mas com o do triunfo do “princípio do amor”. Será realista fiar-se numa criança que nasce pobre? Não será melhor invocar o Deus omnisciente e omnipotente da metafísica? Ou terá a ciência moderna, omnipotente e omnisciente, substituído o Deus da metafísica?"

Mais uma prenda que José Augusto Mourão me enviou e que vos convido a ler. Fala-nos de Deus, de Cristo, do Natal, do Amor que já falei, o de fazermos e vivermos neste Amor que nos congrega, a mensagem que Jesus nos deixou.

Deixo o texto da íntegra. A melhor forma de sermos vivos, já apartir de 2004, é a conversão a tudo pensarmos e fazermos tendo este Amor por norte. Uma viagem interior difícil de iniciar, de prosseguir e de alcançar, neste mundo que em que tudo nos parece querer afastar deste caminho.

A montanha e o viandante


1. Num dos seus últimos escritos, A imutabilidade de Deus (1851), Kierkegaard fala de um “viandante que se queda ao pé de uma montanha enorme, impossível de escalar”. Os seus desejos e aspirações, a sua alma, visam as alturas, mas a montanha continua diante dele, imóvel, impossível de escalar. Pode o viandante chegar aos setenta anos: a montanha erguer-se-á ainda diante dele imutável, inacessível. Mil anos pasassem e a montanha continuaria imóvel e já mortos quantos tentaram escalá-la. A montanha inacessível e imutável é de facto, Deus. Esta será uma das últimas vezes em que um grande pensador vê Deus como o imutável e o eterno, em contraposição com a mutabilidade e a volubilidade do mundo.

2. Os teólogos dizem-nos que Deus é um ser atemporal que é infinito, omnisciente e omnipotente porque Ele é todo o ser,e toda a existência está contida nele. Não sabemos o que dizemos. Não sabemos o que significa existir fora do tempo, conter todo o passado e todo o futuro na existência presente. Não sabemos o que significa ser omnipotente, senão metaforicamente – o pantocrator grego que alude ao governante ou senhor de todas as coisas é mais fácil de conceber do que o seu equivalente latino omnipotens. Não sabemos o que é criar o mundo de nada. Tão pouco o que é ser omnisciente, nem o que é a Santíssima Trindade ou que coisa possa ser identificada de essência e existência.

3. Como pode o Absoluto ser uma pessoa como cada um de nós? Podemos imaginar o Ser de Parménides, imóvel na sua identidade, dando ordens a Noé para construir a Arca? Ou o Uno intemporal de Plotino a explicar o sofrimento a Job? Teremos de separar o Deus personificado das inumeráveis e insondáveis profundidades da Divindade?

4. O cristianismo não é apenas uma religião entre outras: pretende ser a revelação da verdade. E em sentido bíblico, “verdadeiro” não é um facto, mas aquele em quem nos podemos fiar de forma incondicional. É o próprio Deus é a verdade. Como o Deus da fé cristã se revelou numa pessoa concreta, podemos qualificar o cristianismo de revelação eminentemente “histórica”, diferentemente de outras religiões não menos históricas. A revelação de Deus em Jesus é a sua autorevelação única no Filho de Deus; e a melhor prova de que Jesus é, enquanto Cristo, o deus-homem, proporciona-a a ressureição. O cristianismo aplana o caminho através da dupla natureza de Jesus Cristo, o mediador. Conhecemos o seu nome, como a sua vida; sabemos que rezava ao Pai, que pregou a Boa Nova e morreu na cruz.

5. Na nossa civilização tudo se tornou uma questão de fé. Vivemos na fé enquanto estamos na terra. “Fé” significa “fidúcia”. Fiamo-nos no guia quando não sabemos os caminhos; ter fé é um não ver e um não saber. Paulo di-lo: fiamo-nos nas coisas que não aparecem (non apparentium). Onde aparece a salvação é que está o perigo. Até a missão do Tirano que o homem democrático acalenta é “espiritual”: fazer do cosmo uma cidade, de todos os lugares um espaço, de todas as convicções a convicção sobre a eficácia da Técnica e de toda a fé uma só ética. O Anticristo “erit in omnibus subdole placidus” não é o oposto de Cristo, mas o seu símil. Quer trazer ao homem a sua paz, convencê-lo disso e encadeá-lo. É o ídolo da providência que o homem democrático adora: adorará aqueles que dispõem da força desta fé. Servirão aqueles que afirmam poder produzi-la, que saberão magicamente mostrar-lhes que a paz (segurança. Protecção, tutela) está em seu poder. O seu rosto será placidus, a sua violência não se exprimirá com guerra, mesmo “justa”, mas com a divinização das obras. E as obras parecem divinas quando possam produzir o Último (Cacciari, 1997: 128).

6. O problema do Deus Criador continua de pé. A ordem e o sentido do mundo procedem de Deus; se Deus morreu, fica-nos apenas o vazio em que nos perdemos. A nossa experiência diz-nos que Deus confina por vezes com o Absolutamente Outro, o impessoal princípio metafísico, o “Deus absconditus”. Por vezes, objectiva-se na teatralidade e no estetismo dos espectáculos do mundo (Cosmo, Natureza, Mistérios...) que geram uma emoção arrebatadora. Por vezes confina com o excepcional, o inesperado, a estética do maravilhamento e do êxtase. Devemos procurá-lo no interior dos corpos que somos ou pelo contrário no interior dos corpos extraordinários, os do estigma, da dor ou do prazer, da cura inesperada ou da doença? E se Deus fosse a figura da desnudação, do encontro com o Pobre? E se Deus estivesse no esquecimento de si, no martírio, no vazio, no silêncio?

7. A teologia faz-nos esquecer que a Igreja é uma religião de amor. Se tem que travar um combate, não é com a fraseologia de artigos de guerra, mas com o do triunfo do “princípio do amor”. Será realista fiar-se numa criança que nasce pobre? Não será melhor invocar o Deus omnisciente e omnipotente da metafísica? Ou terá a ciência moderna, omnipotente e omnisciente, substituído o Deus da metafísica?

8. O Natal é para nós todos a festa dos afectos. Da encarnação. No cristianismo a salvação é uma questão de fé. Os mais humildes e ignorantes dos homens podem superar os mais sapientes dos filósofos. Para entrar no Reino do Céu devemos tornar-nos crianças. Porque ninguém está mais perto da fidúcia que as crianças.

9. Este é o tempo da humanização de Deus. É essa alegria que os anjos anunciam e os pastores partilham. Aqueça-vos o Menino nesta hora. Aquecei os olhos com as luzes desta festa. Doze são as constelações que formam a coroa do Cristo Kosmocrator e Kronocrator, o Cristo-Sol. Nos sermões leoninos (440-461) a estrela representa o Sacramentum Gratiae, isto é o elemento material através do qual a Graça ilumina os sentidos e conduz a Cristo. Os magos são as primitiae gentium, prova da conversão de todos os povos que não pertencem ao tronco de Israel e as suas ofertas referem-se a Jesus enquanto Deus, Rei e Homem.
10. A mensagem de Isaías deixa transparecer como plantas à superfície da água, uma floração imensa de figuras arcaicas: a justiça, a salvação, a paz, a glória, o júbilo. “Tornou-se realista não dar fé ao amor, tornou-se realista aceitar a crescente tristeza dos homens, tornou-se realista acolher a indispensabilidade da política, o domínio de uns pelo outros” (...) “Virá a hora em que ninguém querer nascer com o corpo de pobre, com um corpo de lixo doente, com o corpo triste do desamor” (MGL: 129).

11. Celebremos a infância, a esperança da vida. Substituamos o conhecimento pela esperança. Nós envelhecemos, mas a vida recomeça. Quem nos lembra isso já não a festa antiga do solstício, mas o Sol do alto que veio visitar-nos. O Natal diz-nos, na sua humanidade brutal, melhor que nenhuma outra sequência da história de Jesus, que é toda a humanidade que é contemplada nesta história. Não somos os pastores, essas figuras raras que vivem a experiência do maravilhamento. Já não ouvimos Anjos: ensurdeceu-nos o positivismo da voz que se tornou táctil, nula e funcional. Esqueçamos o pathos sobre a fraqueza de Deus, tão pueril como a exaltação da sua omnipotência. Que a divina surpresa dê corpo à esperança que nos mantém de pé. Esta nudez, esta vulnerabilidade no tempo é espantosa: haverá outro modo de dizer que Deus é humano?